No livro Reflexões sobre Alfabetização de Emília Ferreiro no capítulo sobre a "Compreensão do sistema de escrita: construções originais da criança e informação específica dos adultos", somos alertados sobre "a importância de adaptar-se ao ponto de vista da criança" em processo de alfabetização, isso no momento de considerar seus avanços.
A baixo transcrevo alguns aspectos que segundo Emília Ferreiro devemos estar alertas:
a)Se pensarmos que a escrita remete de maneira óbvia e natural à linguagem, estaremos supervalorizando as capacidades da criança, que pode estar longe de ter descoberto sua natureza fonética.
b) Em contrapartida, poderíamos menosprezar seus conhecimentos ao trabalhar exclusivamente com base na escrita cópia e sonorização dos grafemas. Enquanto a criança "sabe" que a escrita é significativa, o adulto a esconde atrás do traçado de formas gráficas ou da repetição de fonemas isolados, ambos sem sentido.
c) Ao tratarmos como ininteligível a produção escrita da criança, na medida em que esta não se aproxima da escrita convencional, estaremos desvalorizando seus esforços para compreender as leis do sistema. Imitando a mãe que age "como se" o bebê estivesse falando quando produz seus primeiros balbucios, o professor teria que aceitar as primeiras escritas infantis como amostras reais de escrita e não como puros "rabiscos".
d) Interpretar em termos de certo ou errado (em relação ao modelo adulto) os esforços iniciais para compreender, é negar-se a ver os processos e intenções que possibilitam a avaliação dos resultados.
e) A ênfase na reprodução de traçados reduz a escrita a um objeto "em si", de natureza exclusivamente gráfica: insistir na correspondência fonema-grafema é apresentar a escrita como "espelho" dos aspectos sonoros da linguagem. Ela nem "reflete" apenas os fonemas e nem é um objeto "opaco". É um produto de uma construção mental da humanidade, a partir de uma tomada de consciência das propriedades da linguagem. Como todo sistema simbólico, impõe regras de representação que têm sentido dentro do sistema (pensemos na direção convencional da esquerda para a direita, na utilização de maiúsculas, na separação de palavras, e assim por diante).
f) Os problemas que a criança enfrenta em sua evolução não estão sujeitos a qualificativos em termos de "simples" ou "complexos". São os problemas que ela pode resolver em uma ordem não aleatória, mas internamente coerente.
g) Finalmente, se só nos dirigirmos às crianças que compartilhem alguns de nossos conhecimentos (ou seja, a quem já tenha percorrido praticamente sozinho grande parte do caminho), deixaremos de lado uma grande porcentagem da população infantil estacionada em níveis anteriores a esta evolução, condenando-a -involuntariamente - ao fracasso.
FONTE : Trecho extraído do livro Reflexões Sobre Alfabetização - Emília Ferreiro - Editora Cortez - 26ª Edição - 2011.
Início de ano é um bom momento para uma reciclagem, é sempre oportuno revermos nossos conceitos e penso ser importantíssimo ouvir o que grandes personalidades nos alerta: "Jean Piaget obrigou-nos a abandonar a ideia de que nosso modo de pensar é o único e legítimo e obrigou-nos a adotar o ponto de vista do sujeito em desenvolvimento. Isto é fácil de dizer, mas muito difícil de aplicar coerente e sistematicamente". (Emília Ferreiro - 2011 - p.66-67)
No capítulo: Processos de aquisição da língua escrita no contexto escolar, além da citação acima, há também um esclarecimento: ..."Cada passo resulta da interação que ocorre entre o sujeito cognoscente e o objeto de conhecimento: no processo de assimilação (isto é, no processo de elaboração da informação), o sujeito transforma a informação dada; às vezes a resistência do objeto obriga o sujeito a modificar-se também (isto é, a mudar seus próprios esquemas) para compreender o objeto (isto é, para incorporá-lo, para apropriar-se dele)".(p.68-69)
Aqui temos grandes pesquisadores esclarecendo que não é tão fácil como nos parece adquirir esse novo conceito, então, cabe a nós considerar cada avanço, não supervalorizando, mas sim valorizando cada conquista do sujeito, como um passo mais próximo da linha de chegada.
CONSTRUINDO UM OLHAR PSICOPEDAGÓGICO
Observem o que Emília Ferreiro nos diz: "A partir da análise que acabamos de fazer, pode-se constatar que é muito difícil julgar o nível conceitual de uma criança, considerando unicamente os resultados, sem levar em conta o processo de construção. Só a consideração conjunta do resultado e do processo permite-nos estabelecer interpretações significativas. ... precisamos adotar o ponto de vista do sujeito em desenvolvimento. Definir semelhanças apenas na base dos resultados é privilegiar nosso próprio ponto de vista". (p. 80-81)
"Precisamos distinguir aqui dois problemas relacionados mas diferentes: pode-se falar dos passos seguidos pelas crianças em seu desenvolvimento bem como pode-se falar da velocidade desse desenvolvimento, isto é, do tempo necessário para chegar ao final. ... considero ser muito difícil poder resolver problemas de ritmos de desenvolvimento sem conhecer quais os passos realmente necessários do processo". (p 87).
Com muita alegria ficaria aqui por horas refletindo sobre nosso fazer em relação a essas crianças e o processo de aquisição da escrita, mas o objetivo é contribuir com algumas citações de profissionais que dedicaram e dedicam suas vidas a compreensão de como se dá esse processo, então deixo mais uma vez como sugestão a leitura desse livro.